As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 22
O protesto maciço contra as deficiências do sistema de
prestação de serviços públicos trincou e turvou a imagem de
“paz social” que havia no ar, construída ao longo da última
década. Não se brigou contra um aumento de 20 centavos nos
bilhetes de ônibus em São Paulo e em outras capitais, mas por
muito mais, talvez por quase tudo. A revolta não chegou a pedir o céu, nem organizou uma agenda muito clara, mas fez
com que ressoasse por longos dias um grito de indignação e de
angústia coletiva. Ignorou parlamentares, sindicatos e partidos políticos. Ainda que de modo espontâneo e improvisado,
deixou evidente que se dirigia – por vias transversas, sem coordenação ou clareza programática – contra o governo representativo tal qual estruturado no Brasil. Não se voltou contra um
governo em particular, mas contra todos os governos: contra o
sistema político, seus atores, seus procedimentos e sua cultura.
O Brasil conheceu em junho a face mais visível de uma crise
da política que vinha de longe, que trocara sua manifestação
explícita por uma latência recorrente que aos poucos foi corroendo a representação política e pondo em xeque a legitimidade dos governos.
É uma crise com dete rminações amplas. O sistema político
em sentido estrito surge nela como a ponta de um iceberg, o
protagonista que sintetiza o que há de perverso no todo. Questionou-se o sistema vivo, aquele que se mostra na conduta dos
políticos, dos partidos e dos governantes, na falta de ideias generosas com que dar um sentido de futuro à sociedade, na facilidade com que se permite o enriquecimento de certos atores e a
disseminação de ilícitos de todo tipo. Não é o sistema escrito,
constitucionalizado, mas o que funciona (ou não funciona) de
fato. O que se questionou, portanto, foi o arranjo político protagonizado por pessoas, grupos e classes, interesses econômicos e
organizações que, por vias ora dissimuladas ora explícitas, têm-se
associado para governar o país. A crise que temos diante dos
olhos é mais que crise política: é crise de um sistema perverso,
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As ruas e a democracia