As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 218

mas no dia seguinte tudo segue como dantes. Além disso, o controle da legalidade dos atos ainda se articula precariamente com o controle da eficiência, falha que muitas vezes se combina com tensões e atritos entre gestores e controladores (LOUREIRO; TEIXEIRA; MORAES, 2009; KERCHE, 2007; OLIVIERI, 2010; ARANTES, 2002; MENEZES, 2012). Por fim, precisamos dedicar alguma atenção adicional à ideia, bastante generalizada, de que parte importante da corrupção deriva de nossa cultura política, do autoritarismo que impregnou a construção do Estado entre nós e contaminou nossa estatalidade, da privatização da vida pública que deita raízes no Brasil colonial e que avançou em combinação com uma sociedade de desigualdade e injustiça social que deixou os poderosos com as mãos livres. Há nesse ponto muito de verdade e muito de exagero, de busca de explicações fáceis ou de transferência de responsabilidades. Se é verdade que temos de olhar para a história para não “naturalizar” a corrupção, também é verdade que culpar a formação nacional ou a cultura política pelo que há de corrupção na sociedade é um mau caminho, especialmente se isso for feito sem a devida consideração dos fatos políticos propriamente ditos, das estruturas sociais e do processo de construção do Estado. Não há uma maldição cultural oprimindo a sociedade, por mais que se tenha de reconhecer que nenhum povo é livre de moldes culturais e tradições, que aderem a seu corpo como uma segunda pele. O peso da cultura política e dos hábitos tradicionais na vida política nacional precisa ser adequadamente estabelecido. Para tanto, deve ser investigado de forma sistemática e, sobretudo, analisado com a consideração de que o legado desse Brasil tradicional, que ainda pulsa nas ruas, está inteiramente reconfigurado pelo Brasil hipermoderno movido a redes e tecnologias da informação, que turbina e ressignifica a seu gosto tudo o que vem do passado. Cultura política não é um produto finalizado, composto de uma vez por todas e que paira acima da dinâmica social. 216 As ruas e a democracia