As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 188
que se põem, diante deles, como pessoas informadas e desejosas de construir suas próprias opiniões. O próprio circuito midiático facilita essa situação, na medida em que fornece (ou
busca fornecer) um leque sempre mais elástico de informações
distintas na forma e no formato, ainda quando semelhantes
no conteúdo.
Essa não é uma sociedade despojada de sentido. Ressente-se de falta de sentido em muitas de suas operações, mas sua
dinâmica não se reduz a barbárie, violência e irracionalidade.
Há nela algum tipo de ordem e coesão, que mantem as ações
humanas pulsando de modo regular e seguindo pautas comuns. Mas o social que daí deriva está muito distante da sociedade que acompanhou a modernidade capitalista típica,
toda balizada por estruturas associativas sustentadas pelo sistema produtivo de trabalho intensivo, que plasmava o convívio, organizava o conflito e regulava as relações sociais. Classes bem constituídas e dotadas de alto poder de modelagem e
controle sobre seus integrantes faziam com que a vida coletiva
ganhasse uma dinâmica institucionalizada que se impunha e
ordenava o todo. Partidos políticos, sindicatos e sistemas públicos de bem-estar traduziram e garantiram a reprodução daquela dinâmica.
Hoje, tal dinâmica já não se faz mais sentir tipicamente.
A sociedade ganhou novos ingredientes e funciona segundo outras agências, agendas e motivações. Há nela muitos aspectos
positivos e “emancipadores”, mesmo quando a superfície se deixa congestionar por situações absurdas, injustas e desumanizadoras. Sua ambivalência nos deixa respirar. Seus indivíduos são
“indiferentes”, mas também se preocupam, hipervalorizam a
ética, a solidariedade e a competição, são individualistas e cooperativos, querem exercer o livre-arbítrio e a razão científica
mesmo quando não conseguem se libertar das autoridades espirituais (as seitas, o tarô, a autoajuda, o fundamentalismo).
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