As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 134
cracias complexas e que fica superdimensionado no caso brasileiro, dadas as características do próprio sistema político e eleitoral,
que dificilmente permite que o partido vitorioso nas eleições para
o Poder Executivo obtenha maioria no Poder Legislativo. As coalizões ficam também dramatizadas pela pulverização e fragmentação das siglas partidárias, e especialmente por seu desmesurado
apetite por cargos e recursos de poder.
O arranjo apresenta, portanto, fisionomia bifronte. Por um
lado, é “um modo de governar no qual, dada a inexistência de
base parlamentar suficiente, o presidente eleito é levado a compor vasta e heterogênea coalizão para fazer valer seus projetos
de governo, com as devidas erosões e adições aí implicadas”. Por
outro lado, reflete as dissonâncias, disparidades e ambivalências
da sociedade brasileira: com ele, os setores mais “modernos”
compõem-se com os setores mais “atrasados”, submetendo-os
mas sendo ao mesmo tempo por eles submetidos. Trata-se, pois,
de um experimento que combina “pragmatismo político com
maldição sociológica”, combinação essa que “consagra a presença do arcaísmo como condição social e política perene”
(LESSA, 2011). Em nome da exigência de governabilidade, o
Poder Executivo termina por deixar espaço aberto para a afirmação de atitudes predatórias, interesses espúrios e ações partidárias parlamentares que não colaboram para emprestar racionalidade e coerência às ações governamentais.
Durante os oito anos de Lula, esse sistema foi levado a dilatar ainda mais sua dimensão, dada a necessidade que o então
presidente teve de compensar a falta de maioria parlamentar
com um alargamento sem precedentes da base de apoio. Em
boa medida comandada pelo próprio presidente, hábil neste
tipo de empreendimento, a “base aliada” exerceu de fato importante papel na estabilização do governo. A capacidade presidencial de negociação e composição entre posições dificilmente
conciliáveis foi o recurso que deu vida ao arranjo naqueles anos.
O governo foi comandado por um partido de esquerda mas não
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