As ruas e a democracia. Ensaios sobre o Brasil contemporâneo | Page 132

vel impacto na conflitualidade social e na despolitização da esfera pública. Mudanças no mundo do trabalho e no sindicalismo também contribuíram de maneira significativa para acentuar este quadro. Passou-se a dar crescente importância à dignidade e ao combate a humilhações e injustiças, inclusive (ou sobretudo) as cometidas pelo sistema político, pelo Estado e pelos governos. Erros de gestão, políticas mal concebidas, recursos orçamentários desperdiçados, prioridades não claramente estabelecidas, despesas elevadas para atividades não essenciais tornaram-se progressivamente mais importantes. A luta de classes se reformulou: deixou de ter como referência básica o trabalho, tornou-se mais individualizada e menos coletiva, mais “imaterial”, acompanhando assim a reestruturação produtiva do capital e a formação de sempre mais numerosas redes de trabalho, que se conectam umas às outras no plano nacional e global, funcionam de maneira mais descentralizada e flexível e dificultam, assim, a socialização classista das pessoas. Conflitos continuam a existir no Brasil, evidentemente. Seria estranho se se afirmasse o contrário disto, levando-se em conta que se trata de uma sociedade grande, complexa e cortada por desníveis profundos, muitas desigualdades e inúmeras diferenças. Os conflitos, porém, já não estão organizados somente por salário e emprego. Abarcam número bem maior de temas e questões, o que provoca maior dificuldade de coordenação das lutas e maior dispersão. Poder-se-ia dizer que se processa no Brasil uma tendência à “corporativização” dos movimentos sociais, que se tornam sempre mais vinculados a temas específicos e sempre menos dedicados ao estabelecimento de interações comunicativas com o conjunto da sociedade. Os movimentos sociais afastaram-se dos partidos políticos, tornaram-se mais pragmáticos e mais sensíveis à adoção de condutas “positivas” e “cooperativas” diante dos governos e do Estado. 130 As ruas e a democracia