A crise não parece ter fim PD48 | Page 94

Mesmo assim acho que vale a pena contar um episódio dos tempos de Milton Campos. Mesmo que seja só saudosismo. Foi o professor Edgar da Mata-Machado que me contou, com a graça e a sabedoria que marcaram a sua exemplar passagem por este mundo. Passado tanto tempo, para não aumentar um ponto, liguei para o jornalista José Bento Teixeira de Sales que não relata o fato no seu belíssimo livro Milton Campos – uma vocação liberal. Ele o confirmou e lembrou outros, alertando para o permanente risco da memória. Os dois, Edgar e José Bento, acompanhavam o governador nas audiências públicas mensais em que o dr. Milton falava com os cidadãos que batiam às portas do Palácio da Liber- dade. Uma imensa fila de pedidos, notícias, convites, reclamações que o governador ouvia e os secretários anotavam para providên- cias posteriores. Coisa impensável nos dias de hoje. Nessa época, um dos filhos do dr. Milton prestava serviço mili- tar. Obrigação de todo jovem, filho de quem fosse. Um dia, como costuma acontecer, o jovem acordou mais tarde. Não chegaria a tempo para a chamada matinal dos recrutas. A punição poderia ser, entre outras, 24 horas de xadrez. O Exército era rigoroso e o atraso um ato de indisciplina. O jovem, aflito, apelou para o pai governador pedindo-lhe que autorizasse o motorista a levá-lo ao quartel para evitar a punição. Calmamente, como era do seu feitio, o governador explicou ao jovem cidadão que o carro oficial (na verdade, chamava-se automó- vel) só poderia ser usado para atividades do Governador do Estado. Não era uma propriedade privada, era pública. O pai aconselhou o filho a levantar-se mais cedo e a assumir as responsabilidades pelos seus atos e a ser humilde para receber a punição, se houvesse. Pode parecer romântico, ingênuo, até piegas rememorar fatos como este. O uso do que é público como propriedade privada banalizou-se de tal forma que não escandaliza mais ninguém. Os carros são usados para levar as crianças à escola, os aviões para ministros gozarem férias em Fernando de Noronha, o nepo- tismo campeia e os cargos em comissão, preenchidos sem nenhuma exigência de competência, são moeda de troca pura- mente eleitoral. Mais grave ainda é a fraude nas licitações, a remessa ilegal de dólares para o exterior, o uso de informações secretas para negócios no mercado, a manipulação de índices que fazem a festa dos especuladores de plantão. E imensas fortunas. Mesmo que a História não acabe, exemplos como o de Milton Campos são propositadamente esquecidos e evitados por incon- 92 Antônio de Faria Lopes