A crise não parece ter fim PD48 | Page 176

e fora do set de filmagens, Mauro era quem mais entendia de cinema no Brasil dos anos 30. Na Cinédia, realiza Lábios sem Beijos, Ganga Bruta, Voz do Carnaval. Trabalha depois na Brazil Vita Filmes, produtora de Carmen Santos, onde dirige Favella dos Meus Amores, Cidade Mulher e Argila. Em 1937, realiza O Desco- brimento do Brasil, produção do Instituto do Cacau da Bahia. No ano anterior, a convite de Edgar Roquette-Pinto, inicia seus traba- lhos no Ince-Instituto Nacional de Cinema Educativo – onde irá dirigir cerca de 300 documentários (grande parte com fotografia primorosa de seu filho, Zequinha Mauro) até se aposentar, em 1967. Retornando à sua cidade natal, Volta Grande, faz seu último longa-metragem, O Canto da Saudade (1952), e uma pequena obra-prima, o curta A Velha a Fiar (1964). 1975: em seu “canto de cisne” Mauro faz o roteiro e dirige o curta Carro de Bois, uma retomada a cores de seu Manhã na Roça – O Carro de Bois, da série Brasilianas, que dirigiu para o INCE em 1956. O filme – vencedor do “Troféu Humberto Mauro” na Jornada Brasileira de Curta-Metragem, realizada na Bahia, em 1975 – tem fotografia de Murilo Salles e produção executiva de sua sobrinha-neta, Valéria Mauro. “A poesia do cinema está nos long-shots, nos grandes planos gerais. A roda d’água, por exemplo, é de uma fotogenia extraordi- nária. Aquele rodar lento, os musgos, a água batendo contra o sol (...) Pega um carro de bois no topo de um morro, contra o sol, o candeeiro, o carroceiro em cima do cabeçalho – é de uma beleza incrível!”. Relendo estas palavras de Humberto Mauro, extraídas da gravação de uma das muitas conversas que tivemos em 1975, relembro agora como o cinema – força tamanha – estava entra- nhado em sua dicção. Como se nela fluisse num navegar contí- nuo, sem cortes, na plenitude de um plano-sequência. Melhor: revendo estas palavras, suas palavras-imagens, percebo como o cinema estava nele como se dele nascido, de tal modo que Mauro acabava sempre falando como se filmasse. E, falando, filmasse como gostava de filmar, extraindo beleza daqueles long-shots, daqueles contra-plongés que eram sua marca e assinatura: o carro de bois, o candeeiro, o carroceiro, a câmera baixa apontada contra o sol no alto do morro – paisagem por ele perenizada. Hospital de Volta Grande. Sábado, 05 de novembro de 1983. Noite. Ao despertar, descobre-se de novo internado. Há uma semana, mas não sabia. A brincadeira do “já morri” não tem mais graça: agora está sozinho. Levanta-se ainda tonto: quer ir para casa. É só atravessar a rua: mora ali em frente, na avenida com o 174 Ronaldo Werneck