A Capitolina 5, maio 2014 | Page 22

problemas crônicos

o verão de 1816 um grupo de jovens escritores se reúne para passar as férias num recanto pastoril próximo a Genebra. Dentre eles, um jovem e atrevido poeta de alcunha Lord Byron. Byron lança-lhes um curioso desafio: compor a mais aterrorizante história de terror que se supõe capazes. Nascia assim a novela Frankenstein, de Mary Shelley, o que veio a se tornar a obra mais conhecida e icônica do estilo literário que se convinha chamar Gótico. Surgido no século XVIII, sofreu muitas transformações ao longo do tempo, mas conservando algumas características embrionárias: a escuridão, a dor e o sofrimento emocional. Histórias de terror, de monstros e vampiros também compartilham esse ancestral comum – embora em seu interior possuam pouco ou nada do viço e da estética originais. Deste filão surgiram volumes como a trilogia água-com-açúcar Crepúsculo, tanto ao gosto das editoras de hoje. Não as culpo; é preciso sobreviver. Apenas lamento.

Mas voltemos à época áurea de estilo, que é o que importa. Que houve um ajuntamento dos que talvez foram os maiores autores que o estilo Gótico já teve é de conhecimento geral, sendo cunho da História e da Bibliologia. O que ninguém sabe é que no seio daquele grupo de autores ilustres jazia um jovem poeta oculto sob o vulto dos outros trovadores. Tão brilhante quanto aqueles, não podia ele revelar seu talento ao mundo, porque dizia sua arte e toda a estética gótica só alçaria a glória pura e verdadeira, o pedestal mais excelso e elevado da perfeição artística, se obscura; tão obscura, mas tão obscura que de tão obscura ninguém a enxergaria.

– E como hei alguém de saber que ela existe, se não se pode vê-la? perguntou-lhe certa feita Lord Byron.

– É preciso crer, meu caro, tornou ele. Pois o poeta sem fé é como veneno derramado na fonte, declamou representando como um ator teatral trágico.

Permaneceu, assim, este gênio à sombra da História e por isso não o conhecera tu. Nem tu nem qualquer outro ser humano. Ninguém sabia de sua existência. Pode ser que nem ele mesmo o sabia. Sabei agora. Chamava-se Casimiro. Sua mãe chamava-o “casinho” para seu desespero e vaidade de poeta funesto que era. Casimiro tinha dessas veleidades: mergulhava de cabeça no estilo de vida que escolhera para si. O Gótico não era apenas um estilo literário, era o encerrar tortuoso de toda uma vida. Por isso Casimiro não desvestia-se de preto, calças pretas, botas pretas e um sobretudo que não tirava por nada. Decorou seu quarto com motivos vampirescos, trastejou-o com mobília velha (o mais próximo do medieval que pôde encontrar) e rematou-o com um crânio que roubara ao cemitério. Estava completo seu castelo, ou antes, seu calabouço. Ali enclausurava-se por longas horas, só vindo a manter contato humano para comer ou pedir que sua mãe lhe comprasse achocolatado, porque não vivia sem. Era dramático o Casimiro. Tinha ele essa veia para a tragédia que possuem os atores dramáticos. Tudo lhe era doloroso: a vida, o amor, a solidão, a inexorabilidade da morte, um cão vira-latas que errava pela rua, tudo causava profundo pesar e também inspiração.

Não é difícil compreender porque Casimiro tinha tais e quais comportamentos. Casimiro era jovem e a juventude é um meio caminho entre a infância e a madureza. Esta fase marca o luto entre a vida de criança, da segurança do seio materno, da vida de descobertas e sem obrigações, até mesmo do corpo de criança, para a penosa vida de adulto. É difícil deixar a vida boa para trás. E esse luto (como qualquer outro), é triste, é funesto, é fúnebre. E isso se reflete em todo o comportamento desse jovem mancebo. Resolve-se essa fase abandonando-se toda a carcaça infantil, aceitando de bom grado o fardo que lhe cabe e tocando adiante. Estranho mesmo é quem nunca enlutou-se na adolescência. Certo é que muitos, não resolvendo totalmente este luto na mocidade, arrastam o negrume e o melodrama para a vida a fora. Sorte a nossa, que nos dão assim Shelleys, Byrons, Poes e Casimiros.

E em se falando em Casimiros, lembra que este dizia a seus companheiros do grupo de Genebra que nos momentos mais enlevados, costumava ouvir uma música ecoar em seus ouvidos; algo como uma nênia triste, uma paródia melancólica. Isto e um ribombar, como as batidas de um coração: “Tum, tum. Tum, tum”. Não se sabe ao certo se é isso verídico ou inventado pela mente sinistra de Casimiro. Mas que produz excelente efeito no estilo de suas obras, lá isso é verdade.

Havia já semana e meia que Casimiro estivera encerrado em seu quarto, compondo, compondo. Quando acabou-se a comida, pensou ele, acaso quisesse dar ao mundo toda excelência de seu gênio, necessário seria algum sacrifício; teria que viver da beleza se seus versos. Ao cabo do segundo dia sem comida, Casimiro exasperou-se de fome e quis comer as folhas de papel onde deitara seus poemas. Concluiu que papel e tinta não saciariam sua fome, fazendo ainda roer-lhe o estômago. Frustrado, faminto e sem querer compor mais coisa alguma, resignou-se e foi se sentar num canto escuro do quarto, com a mente vazia, no meditar irrefletido.

Súbito, sentiu uma ânsia que não podia discernir nem nomear; um desejo latente, algo como uma revelação divina, um êxtase, epifania, se assim preferes. Ouviu bater mais uma vez o coração: “Tum, tum. Tum, tum.” Agora mais frenético, mais ligeiro, mais intenso, num crescente medonho, dilatando, retumbando. Casimiro levantou-se do canto escuro onde estava, caminhou para a grande porta de duas folhas e escancarou-a. Os raios de luz entraram na casa e feriram-lhe a pele alva, quase intocada do sol. Ousou mais um passo adiante, para a rua, ouvindo ecoar ainda o coração a pancadas nervosas, no compassar frenético: “Tum, tum, tum, tum.” Repentinamente, ouviu aquele pulsar infernal ribombar uma última e estrondosa vez: “Brum!”

– É hora de sair, disse abrindo os braços, num último gesto dramático.

21 A Capitolina

Por Jeff de Paula

N

Um Castelo Para Casimiro