A Capitolina 5, maio 2014 | Page 11

Escrituras 10

Nessa passagem, podemos ver concretamente como a ideologia de uma era marca presença nas páginas de um romance: o tema da conversa entre os dois persona- gens – de fato, o tema de inúmeros diálogos em Tom Jones – é a discussão sobre a mo- ral, os bons costumes, os bons exemplos a serem seguidos. É devido a essa característi- ca que Tom Jones é também designado como um romance prescritivo. Em outras pala- vras, a ideia de retratar o indivíduo e de exaltar a vida comum – mas sem esquecer que é o padrão da classe média que interessava difundir – está presente em diversos diálo- gos moralistas, como o do fragmento acima.

Na Introdução de The Mysteries of Udolpho, Terry Castle esboça uma justifica- tiva para o sucesso da obra: “Uma dica pode estar na palavra chave do título: misté rios. [Radcliffe] desejava desper tar nos leitores uma sensibilidade para o sobrenatural – para forças invisíveis agindo no mundo (RADCLIFFE, 1998:xxi). Sabemos que alguns preceitos iluministas resultaram na racionalização de sentimentos e na substituição de um imaginário fantástico por outro mais realista e ligado ao cotidiano do homem co- mum. O autor da Introdução de Udolpho aponta exatamente para a inovação de uma escritora como Radcliffe. Contra a corrente do racionalismo, impulsionada por Fielding e outros realistas, os autores góticos setecentistas exaltavam o inexplicável, o sensó rio, o sublime. Como um exemplo do último, é dessa forma que é retratada a reação da prota- gonista Emily perante os Alpes: “Mesmo sendo selvagens e românticos, esses cenários tinham muito menos do sublime em si que os Alpes que guardam a entrada da Itália. Emily sentia-se elevada, mas não foi tomada por aquela emoção de admiração indescri- tível que vivenciou continuamente em sua passa gem pelos Alpes” (RADCLIFFE, [1794] 1998, p. 226). Eis aí uma pequena prova de que o ques tionamento dos preceitos do Iluminismo contaminou a obra de Radcliffe: a autora não camuflou as volúpias emo- cionais da frágil personagem perante magníficas montanhas – e essa mesma estratégia está presente em di versos outros romances góticos setecentistas. É o que acontece novamente quando Emily vê o castelo de Montoni: “Silencioso, solitário e sublime, parecia o soberano daquele lugar, e desa fiava todos aqueles que ousavam invadir seu reino. Quanto mais a luz do entardecer se aprofun dava, suas pare- des ficavam mais terríveis, e Emily continuava a olhar” (RADCLIFFE, 1998: 227). Mais uma vez, percebemos que a autora abre diversas brechas em sua narrativa para a des- crição de sentimentos e reações exaltadas, mesmo que tais descrições não possam ser racionalmente justificadas.

Como já especifiquei na introdução deste trabalho, o meu objetivo é o de apresentar uma coletânea de dados sobre a recep ção dos primeiros e mais influen tes romances góticos ingleses do século 18, compartilhar também algumas concepções interessan tes que os autores de tais obras teceram sobre a arte de escrever. Até agora, tracei o contexto histórico da Inglaterra setecen tista e destaquei dois exemplos de manifestações literárias em diálogo com tal contexto. Agora, podemos focar nossa atenção nos romances e contos góticos mais influentes da Inglaterra setecentista, que também são objeto de estudo de minha tese de doutorado, em andamento. Essas obras são: The Mysteries of Udolpho (1794) de Ann Radcliffe, The Castle of Otranto (1765) de Horace Walpole, Vathek (1787) de William Beckford, e The Monk (1796) de Matthew Lewis. Acre dito que o mais interessante ao juntarmos informações sobre o panorama da recepção e da escri ta de romances góticos ingleses no século 18, é que os preceitos mais sólidos para tal sociedade se evidenciam repetidamente, e em relação a várias obras. Em primei ro lugar, para termos uma ideia da circulação de textos góticos no século 18 na Inglaterra, “os contos ou fragmentos góticos começaram a aparecer em revis tas logo após a publicação de The Castle of Otranto de Horace Walpole em 1764, e ficaram mui to comuns após 1790, quando a loucura pelo gótico literário atin giu seu auge na Grã-Bretanha" nha” (POLIDORI, 1997: xvi). A efervescência da publicação de livros aumentou o trabalho dos críticos da época. Sabemos que a ideia do ofício de um crítico literário sofreu transformações ao longo dos tempos. No século 18, podemos perceber que os autores já consideravam o julgamento dos críticos e até dialogavam com eles em seus prefácios e introduções:

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