A Capitolina 4, abril 2014 | Page 20

Era uma vez, em um Reino muito muito distante, um garoto pobre

e franzino que, por conta da cegueira, só queria voltar a enxergar. Nenhuma

criança com ele queria brincar ou fazer amizade. Vivia pelas vielas do domínio, de lugar em lugar, dependendo da misericórdia do povo mais humilde para comer e ter onde repousar.

Dia sim dia não, era motivo de chacota por parte dos senhores abastados que passavam por onde o garoto perambulava, para sair ou entrar no Reino, e vítima constante dos desmandos dos Guardiões da Coroa, encarregados de manter a ordem pública. O garoto fingia não ligar, mas compreendia tudo.

Certo dia, o Rei baixou um decreto: não haveria mais desabrigados em suas terras, era o que diziam os boatos. Comemoravam os enjeitados quando foram avisados da notícia oficial: Todos serão expulsos do Reino. Muitos fugiram sem esperar pelo que viria. O garoto, assustado e sem saber para onde correr, ficou. Foi levado às margens da Floresta Obscura, aonde nem o mais bravo guerreiro daquelas paragens se aventurava adentrar.

Por muito e muito tempo o garoto andou por aquele lugar, passando medo, frio e fome, completamente perdido. Não sabia quando era dia nem noite, e os sons que seus ouvidos captavam eram os mais aterrorizantes que já conhecera em sua curta vida. Exausto e quase sem forças, se arrastava pela terra e folhagens, sem esperanças de encontrar uma vida melhor...

Foi com um misto de espanto e alegria contida quando abriu os olhos e enxergou. Viu-se em um quarto bonito, deitado sobre uma cama confortável. Tinha recobrado as forças, crescido e encorpado. Levantou-se e saiu da cabana onde estava.

Andou pelas ruas do vilarejo, àquela hora apinhada de pessoas e animais, que se falavam e se tratavam como iguais. Assim que o garoto passava, lhe cumprimentavam e ofereciam tudo que estivesse à disposição. Uma jovem toupeira, falante e convencida, acercou-se do garoto, garantindo que seria sua fiel escudeira, e deu-lhe às boas vindas à Terra dos Sonhos.

Não demorou muito para que os abutres, com livre trânsito entre a luz e a escuridão, noticiassem ao Rei sobre a boa sorte do garoto. A Majestade, no mesmo instante, ordenou:

A Floresta Obscura será ultrapassada, e a Terra dos Sonhos, tomada.

Pessoas e animais ficaram em polvorosa ao saber que aquele lugar de felicidade estava com os

dias contados, e agora apontavam para o garoto como responsável pela má sorte.

Na reunião convocada pelos anciões na Praça da Virtude, muitas ideias foram

ponderadas, mas nenhuma satisfatória. Sentindo-se culpado, o garoto gritou:

Voltarei à Floresta, e evitarei o caos.

Ninguém mais falou. Desapareceu por entre as árvores sozinho, com o silêncio às suas costas.

Não sabia se a escuridão se devia apenas pela floresta ou se havia cegado novamente. O medo voltara junto com os sons medonhos. Sentia-se fraco novamente. Caiu de joelhos e percebeu a terra vibrar. Era o Exército do Rei, que marchava com tochas acesas em sua direção. Cercaram-no, e pode ouvir a voz do Mensageiro ao pé do ouvi

De nada adianta tua rendição. A maldição já foi por ti lançada – A Terra dos Sonhos será conquistada.

Mal terminou a frase, o Mensageiro foi agarrado por uma enorme águia e mantido no ar, gritando. Os homens de frente do Exército se transformaram em escaravelhos. A jovem toupeira postou-se ao lado do garoto, contando-lhe que a reunião prosseguiu, e todos se convenceram de que apontar-lhe como culpado não era certo, e decidiram ajudar-lhe da forma que podiam. Então narrava-lhe, toda entusiasmada, as peripécias:

As corujas indicam os caminhos, enquanto as águias dificultam que os militares peguem suas armas. Nosso pessoal está jogando sobre o Exército uma pequena bolinha com um líquido mágico, que os transformam em insetos dos mais variados tipos. Um monte de homens está correndo de volta para o Reino, com medo, mas, veja só, até os abutres estão se aproveitando da situação.

Com a derrocada de seu Exército, o Rei blasfemou. O Mensageiro, que a tudo acompanhou do alto e fora trazido ao Reino pela enorme águia, tratou de noticiar à Majestade como a luta fora perdida. Por fim, informou-lhe que o garoto o aguardava à porta do Castelo para uma audiência. Para a Majestade, tal atitude era uma afronta.

A grande praça que ficava à frente do Castelo estava lotada entre súditos daquele Reino e habitantes da Terra dos Sonhos, que vieram em missão de paz. Ao vislumbrar a possibilidade de se impor, o Rei bradou tudo que queria, sem parar, até se cansar. O garoto não ousou tecer argumentos – contra palavras de tão pouca expressão, nada necessitava dizer.

Apenas pousou a mão sobre uma das pedras que formava a base do Castelo. Devagar, a construção começou a ruir. Indignado, o Rei voltou para dentro, dizendo que iria parar o desabamento. Em pouco tempo, a imponente fortificação virou um raquítico amontoado de pedras e pó.

Ao se voltar para a multidão, o garoto já havia se tornado homem, e era aplaudido em uníssono. Uma festa então se iniciou, e em torno do antigo Reino as árvores deixavam transpassar os raios de sol, fazendo surgir flores nunca vistas e a necessidade de se mudar o nome da Floresta. Ao longe, na estradinha de terra, o cego que via com o coração e sua fiel escudeira seguiam felizes rumo à jornada de mudar o mundo.

Terra dos

Sonhos

mini conto

19 A Capitolina

Voltarei à Floresta, e evitarei o caos.