A Capitolina 4, abril 2014 | Page 18

problemas crônicos

avia um menino gnomo chamado Tjovik que vivia num recanto encantado da Escandinávia. A vida era boa e tinha ele alguma coisa de sua: uma fazendola onde vivia com a família: pai, mãe, irmãos e um avô; todos gnomos. Havia os vizinhos da vila também. Todos mui pequenos, de orelhas pontudas, chapéus pontudos e longas barbas. Numa noite de festa, Tjovik ouviu de seu avô, grande contador de histórias, a lenda de uma montanha encantada apinhada de ouro e joias, guardada pelos trolls (seres monstruosos e horrendos). Tjovik matutou, coçou as barbas ruivas e concluiu: “se há tanto ouro nas mãos desses monstros, seres perversos que são, porque não ir lá e tomar um bocado para mim também?”.

Tjovik aparelhou-se, trepou a montanha e perseverou, até conseguir tomar para si o ouro dos trolls. Não obstante, um espirro de um dos trolls fez tremer a terra de tal maneira que virou a pequenina embarcação em que fugia, dissipando assim todo o venerado ouro que levava consigo. Logo seu pai entrou no conhecimento da empreitada, Tjovik levou uma surra inominável, ficando sem ouro e com as orelhas quentes.

A fábula acima faz parte do livro “Os Sete desejos” de Alfred Sedberg, de 1909 e chama-se “Os trolls e o menino gnomo”. Sedberg se inspirava nas antigas fábulas Celtas para compor suas narrativas, transmitidas originalmente pela tradição oral. Esforçava-se ele por traduzir aquilo que antigas tradições nórdicas aventavam expressar, que era falar sobre a alma humana. Em verdade, todas as fábulas e mitos são dessa ordem. São elas feitas por homens senão para falar dos próprios homens. E as fábulas infantis falam dessa fase tão peculiar quanto deleitosa da vida dos homens que é a meninice. Essa é a fase em que somos narcisistas, o egoísmo impera; somos onipotentes, fazemos e acontecemos. Nenhum problema é tão grande que não possa ser enfrentado com uma capa e um espadim. Somos cavaleiros, somos heróis, somos fortes e vencemos todo o mal.

Se acaso puxares pela memória verá o quanto gozávamos. Éramos felizes por simples obra do destino; tudo nos era afeito ao coração. Viver, sonhar, amar, a vida nos era um eterno deleite, bebendo na fonte de um manancial inesgotável de contentamento. Até entestarmos com o maior temor do menino Peter Pan, que é, a saber, o medo de crescer. Mal inevitável, imposição orgânica, exigência de nossas necessidades mais primitivas, crescer é questão de sobrevivência. Sobrevivência pré condiz abnegação, daí a pá de cal definitiva ao delírio de nossos sonhos que é este carrasco chamado TRABALHO. Sei que o ecoar dessa palavra fez sacudir as estruturas de nosso amigo que me lê, tal fez o espirro do troll monstruoso à débil

embarcação do menino Tjovik. Os labores e os espirros são isso, abalam e derribam o que antes

E se crescer é inevitável, destino inexorável de todo ser vivente, então a conclusão

irremediável é que a culpa é da vida. Não, não é das estrelas! Quê algumas bolas incandescentes

de gás e poeira tem que ver com o que sucede a meia dúzia de reles humanos aqui em baixo?

A culpa é da vida, que pegando-nos pelos colarinhos chacoalha-nos feito bonecas de pano: –

“Acorde, acorde que já são horas!”, diz ela, abstraindo-nos do sono doce, dissipando os vapores

de nossos mais belos sonhos.

Essa é a eterna sombra da existência, como dizia o Fausto. Não fosse a realidade da

vida permaneceríamos eternamente no reino do encanto e da fantasia que é a infância, tal

fazem músicos, pintores, atores e toda classe de artistas, assim como este autor que vos fala. O

enveredar pelo universo das artes é a permanência no mundo mágico e fantástico da infância, no

mundo “ideal”, como meninos birrentos e caprichos que teimam em não despegar dos últimos

fiapos pueris. O mal disso é que o salto ao extraordinário da fantasia não é aos arroubos e

repentes, mas aos saltinhos, pois de alguma maneira ainda temos que subsistir deste lado de cá

da toca do coelho de Alice.

É de confessar, todavia, que muita vez é difícil conter a pena a dar seus grandes saltos

extraordinários e fazer as mais arrojadas piruetas que se supõe possíveis. É preciso manobrá-

la a todo o tempo para não acabar por descambar para a devaneio total (o que é tão dificultoso!

). Por vezes o texto guina para a direita, e tenho que puxá-lo para a esquerda; despenca para a

esquerda, e lá vou eu atrás dele para torná-lo a direita novamente.

E assim há vezes em que a fantasia vem como o esplendor do sol da manhã arredando a

crueza de mármore da vida real e concreta, como faz ele à névoa fria que cobre a noite. Encarno

então não mais Peter Pan de J. M. Barrie, mas Tjovik, o menino gnomo, escalando a montanha

mágica, ombreando trolls tenebrosos e tornando para casa com o ouro debaixo do braço. Mas

então a pena chega ao fim da página, a história termina sem razão e a realidade exige seu trono

de Fausto enternecido, como um sol que se põe frio e cansado, nesse entardecer sorrateiro da

“Aí vinde novamente, sorrateiras sombras...”

17 A Capitolina

Por Jeff de Paula

H

A Culpa é da Vida