A Capitolina 3, março 2014 | Page 7

por Sigmund Freud

É simples demais dizer que desde que livros possuem classes – ficção, biografia, poesia – nós devemos separá-los e extrair de cada um o que é certo de que cada um possa nos dar. Ainda poucas pessoas exigem dos livros o que os livros podem nos dar. Comumente nós vamos aos livros com a mente embaçada e dividida, exigindo da ficção o que daquilo pode ser verdade, da poesia o que pode ser falso, das biografias o que pode ser elogioso, da história o que pode reforçar nossos próprios preconceitos. Se nós pudéssemos banir todos esses preconceitos quando lêssemos, qual não seria um admirável início. Não tente dar ordens para seu autor, mas tente tornar-se nele. Seja seu companheiro de trabalho e ajudante. Se você hesitar, e fizer reservas e criticar logo de cara, você está prevenindo a si mesmo de obter todos os valores possíveis daquilo que você lê. Mas se você abrir sua mente com a maior amplitude possível, então sinais e dicas de sutileza quase imperceptível, dos giros e voltas das primeiras sentenças, lhe colocarão na presença de um ser humano como nenhum outro. Impregne-se disso, familiarize-se com isso, e logo você verá que o seu autor está lhe dando, ou está tentando lhe dar, algo muito mais definido. Os trinta e dois capítulos de uma novela – se nós considerarmos como ler uma novela antes – são uma tentativa de fazer algo tão fabricado e controlado quanto um edifício: mas palavras são mais impalpáveis que tijolos, a leitura é um processo mais longo e complicado que ver. Talvez o caminho mais rápido para entender os elementos do que um novelista está fazendo não é ler, mas escrever; fazer seu próprio experimento com os perigos e dificuldades das palavras. Relembre, então, algum evento que deixou uma impressão distinta em você – como que na esquina da rua, talvez, você passou por duas pessoas conversando. Uma árvore balançou, uma luz elétrica dançou, o tom da conversa era cômico, mas também trágico; uma visão geral, uma concepção completa, aparece contida naquele momento.

Mas uma espiada na companhia heterogênea da prateleira lhe mostrará que escritores muito raramente são “grandes artistas”; muito mais freqüente um livro não faz questão alguma de ser uma obra de arte. Essas biografias e autobiografias, por exemplo, vidas de grandes homens, de homens, há muito, mortos ou esquecidos, que estão lado a lado com as novelas e poemas, nós deveríamos nos recusar lê-las porque não são “arte”? Ou devemos ler em primeiro lugar para satisfazer aquela curiosidade que nos acomete de vez em quando ao passarmos a noite defronte uma casa, e hesitar, onde as luzes estão acesas e as cortinas ainda não cerradas, e cada andar da casa nos mostra uma seção diferente da vida do ser humano? Então nós somos consumidos com uma curiosidade sobre a vida dessas pessoas – os serventes fofocando, os senhores jantando, a garota se arrumando para uma festa, a mulher idosa à janela no seu tricô. Quem são eles, o que são eles, quais são seus nomes, suas ocupações, seus pensamentos, e suas aventuras?

Biografias e memórias respondem a tais perguntas, alegram inúmeras dessas casas; elas nos mostram pessoas fazendo as coisas do dia a dia, trabalhando, falhando, tendo sucesso, comendo, odiando, amando, até a sua morte. E algumas vezes na medida em que olhamos, a casa esmaece e os trilhos de ferro desaparecem e nós estamos então no mar; estamos caçando, velejando, pescando; estamos entre selvagens e soldados; estamos tomando parte nas grandes campanhas. Ou se nós gostamos de permanecer aqui na Inglaterra, em Londres, mesmo assim a cena muda; a rua se estreita, a casa fica menor, apertada, em formato de diamante, e malcheirosa. Nós vemos um poeta, Donne, conduzido por tal casa, pois as paredes são tão finas que quando as crianças choram suas vozes cortam através delas. Nós podemos segui-lo, entre os caminhos que estão nas páginas de livros, para Twickenham; para Lady Bedford´s Park, um famoso lugar de encontro de nobres e poetas; e então girar nossos passos em direção a Wilton, a grande casa sob o monte, e ouvir Sidney ler a Arcadia para sua irmã; e passear entre aqueles pântanos e ver aquelas garças que figuram naquele famoso romance; e novamente viajar ao norte com aquela outra Lady Pembroke, Anne Clifford, para sua charneca selvagem, ou mergulhar na cidade e controlar nossa alegria na visão de Gabriel Harvey em seu terno negro de veludo conversando sobre poesia com Spencer. Nada é mais fascinante que tatear e tropeçar no esplendor e trevas da Londres Elizabetana. Mas lá não existe a permanência. Os Temples e os Swifts, os Harleys e o St. John nos acenam; hora depois de hora pode-se passar desembaraçando suas querelas e decifrando seus personagens; e quando nos cansamos deles podemos ir, passando pela dama de preto usando diamantes, a Samuel Johnson e Goldsmith e Garrick; ou

cruzar o canal, se preferirmos, e encontrar Voltaire e Diderot, Madame Du Deffand; e então voltar à Inglaterra e Twickenham – como certos lugares se repetem e certos nomes! – onde uma vez Lady Bedford teve seu Parque e Pope lá viveu depois, para a casa de Walpole na Strawberry Hill. Mas Walpole nos introduz a tais abundantes novos conhecidos, existem tantas casas a visitar e sinos a badalar que nós podemos hesitar por um momento, nos degraus da entrada de Miss Berry, por exemplo, quando observamos, lá vem Thackeray; ele é o amigo da mulher que Walpole amou; assim meramente indo de amigo a amigo, de jardim a jardim, de casa a casa, nós passamos de um fim da literatura inglesa a outro e acordamos para nos achar novamente aqui no presente, se nós pudermos então diferenciar este momento de todos que passaram antes. Isto, então, é um dos jeitos nos quais podemos ler essas vidas e cartas; podemos fazê-los acender as muitas janelas do passado; nós podemos assistir os mortos famosos em seus hábitos familiares e imaginar às vezes que estamos bem perto e podemos surpreender seus segredos, e às vezes podemos tirar uma peça ou um poema que eles escreveram e ver se a sua leitura muda na presença do autor. Mas isso, de novo, desperta outra questão. Quanto, devemos nos perguntar, é um livro influenciado pela vida do autor – quanto é seguro deixar o homem interpretar o autor? Quanto devemos resistir ou abrimo-nos às simpatias e antipatias que o próprio homem despertou em nós – tão sensíveis são as palavras, tão receptivo do caráter do autor? Estas são questões que nos pressionam quando nós lemos vidas e cartas, e devemos responder por nós mesmos, pois nada pode ser mais fatal que ser guiado pelas preferências dos outros em assunto tão pessoal.

Escrituras 6