A Capitolina 3, março 2014 | Page 16

problemas crônicos

15 A Capitolina

Respirações suspensas. Um forte cheiro de ansiedade paira no ar. Todos estão sentados em suas poltronas, queixos caídos, olhos nervosos e ansiosos por ver o fim. Cumpre lembrar que, nessa tarde, depois do expediente, fora você finalmente contrair aquele livro, volume rotundo, capa dura, adornos em dourado, obra fina e robusta. Mas não revelemos ainda o que fosse, antes de expor-lhes a opinião de um contemporâneo erudito, que asseguro possui relação com o assunto em questão. Disse ele, certa vez, que quem deve dizer do que se trata um livro é o leitor e não seu autor. A opinião do autor não deve ser levada em consideração, tampouco suas intenções ao engendrar tal obra, mas sim o atendimento subjetivo que cada um possui dela. Será? Suprimo minha opinião por alguns instantes para tornar à tua descoberta, que foi quando abalroou com teu livro pela rua.

Todos os dias passava você à frente daquela livraria e o bispava da vitrine, como Dom Miguel fazia à coroa portuguesa, cobiçoso, desejoso, faminto. Apanhou-o da prateleira e não poupou seus cobres: pagou o que pediram – e pagaria mais se pedissem –, mas não pediram. O livro estava há meses na prateleira, juntando poeira, atraindo traças. O alfarrabista o espanejou, lustrou a capa e o colocou na vitrine a ver se se livrava dele (foi quando você o viu e o levou para casa debaixo do braço, com os olhos crispados de prazer). E guinou para casa – o livro debaixo do braço –, morto por lê-

lo. Vê-se que a expectativa era grande. Chegou a tal estima, talvez, por mérito da capa, que era muito extravagante, (brilhavam os adornos como o ouro de Midas em seus olhos, meu senhor!). Isso ou a recomendação feita por uma amiga, assim de pronto, no ermo de uma tarde morta. Não, não... Há de ser a coisa da capa mesmo.

E lá está você, chafurdado na poltrona de camurça, cara enfiada no livro e a imaginação não sei em que terras de Gulliver. Lê, relê, recita uma frase mais dramática, interpreta outra por meio de gestos, saca um epigrama daqui, uma citação acolá, espaneja uma página, abana outra e o crê livro; mais livro que aquele outro que jazia ao lado deste, mais empoeirado, mais mofado, comido dos vermes e também menos lido. Não fosse ele a Eneida, tampouco seu autor fosse Virgílio, já eu aqui não o citaria senão para pôr mais relêvo ao escrito. Mas o era, era Virgílio!

Pois antes mesmo de rematar a leitura, a eminência que meteu neste singelo amontoado de folhas de papel é maior que aquele autor e todo o esplendor de Roma juntos. Veja que mal chegou você ao desfraldar narrativo da obra e já o pinta maior que César, escarranchando a comprida introdução que vosso autor erigiu, vendo-se erguer dos campos ao norte da Noruega ou da Germânia vosso herói, cheio de virtudes, moço galhardo e probo e todo brios. De súbito, pula você da poltrona ao ver surgir de trás a colina o vilão , joga os braços ao ar, soca o espaço por zanga. Mas a leitura é atividade sonolenta e lança uma cortina de chumbo sobre seus olhos, no que derriba você o volume a um lado e o corpo a outro. De manhã, depois do café, lembra-se da noite anterior, de todo o êxtase corrido ali na sala e se arrepende. Olha o livro com a ponta do lábio soerguida e uma vez mais se arrepende. “Que loucura”, pensa. Engaveta o tomo para só desengavetá-lo meses depois, com o espírito renovado, embebido de entusiasmo para retomar de onde parou com a mesma

têmpera, o mesmo ímpeto. Mas o lance coincide com o tempo em que entrou você a somar problemas conjugais e a leitura quis lhe parecer mais sofrível, a nobreza do herói lhe pareceu bobagem sentimentalóide e todas aquelas pequeninas figuras que se digladiavam diante seus olhos pareciam interpretar uma peça tão afetada e grotesca que o fizera atirar o livro longe, deixando uma pesada sensação de tempo perdido.

É dessa maneira que meu contemporâneo erudito se fia devam ser lidos os livros. Talvez resida ele n’algum mundo ideal, com pessoas ideais e que não sejam vulneráveis às vicissitudes da vida e do ímpeto tempestuoso dos seres humanos. Pode ser que lá não existam os astronômicos encargos tributários brasileiros ou as enxaquecas das quais sofrem as damas de nosso tempo. Tudo pode ser. O que não pode ser é admitir-se que o significado dado à uma obra literária seja proveniente única e exclusivamente daquele que lê – aquele que ali em cima, há alguns parágrafos foi do êxtase “Prozac” à desesperança, enfado e repugnância. Obviamente, como são as pessoas diferentes umas das outras, cada qual terá uma experiência diversa a respeito do que leu. Todavia, o autor quando da construção da sua obra possuía uma intenção em mente, objetivo a alcançar, um designo; algo tão engenhoso e sublime que foi incensado, louvado e reconhecido por haver alcançado esses louros e nos dado essa dádiva – que se mostra relevante no espaço e no tempo, social e culturalmente.

E se a interpretação de um livro deveria efetivamente ser dada por seu leitor, meu caro amigo erudito, suponha você o que seria deste mundo se Nero e não Constantino tivesse presidido o Concílio de Nicéia. Se bem que Constantino...

Manual prático para a leitura

de um livro qualquer

Jeff de Paula