A Capitolina 2, fevereiro 2014 | Page 8

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psicologia animal não precisa ser sublinhada. Gostaríamos de insistir aqui sobre um aspecto menos visível do problema em que K. von Frisch - preocupado em descrever objetivamente as suas experiências - não tocou. Estamos pela primeira vez em situação de especificar com alguma precisão o modo de comunicação empregado numa colônia de insetos e pela primeira vez podemos imaginar o funcionamento de uma linguagem animal. Pode ser útil assinalar de leve aquilo em que ela é ou não é uma linguagem, e o modo como essas observações sobre as abelhas ajudam a definir, por semelhança ou por contrastre, a linguagem humana.

As abelhas mostram-se capazes de produzir e de compreender uma verdadeira mensagem, que encerra inúmeros dados. Podem, pois, registrar relações de posição e de distância; podem conservá-las na "memória"; podem comunicá-las simbolizando-as por diversos comportamentos somáticos. O fato notável consiste inicialmente em que manifestam aptidão para simbolizar: há, mesmo, uma correspondência "convencional" entre seu comportamento e o dado que traduz. Essa correspondência é percebida pelas outras abelhas nos termos em que lhes é transmitida e se torna em motor de ação. Até aqui encontramos, nas abelhas, as próprias condições sem as quais nenhuma linguagem é possível - a capacidade de formular e interpretar um "signo" que remete à uma certa ''realidade", a memória da experiência e a aptidão para decompô-la.

A mensagem transmitida contém três dados, os únicos identificáveis até aqui: a existência de uma fonte de alimento, a sua distância e a sua direção. Esses elementos poderiam ordenar-se de-maneira um pouco diferente. A dança em circulo indica simplesmente a presença do achado, determinando que está a pequena distância. Funda-se sobre o princípio mecânico do "tudo ou nada". A outra dança formula verdadeiramente uma comunicação; desta vez, é a existência do alimento que está implícita nos dois dados (distância, -direção) expressamente enunciados. Vêem-se aqui muitos pontos de semelhança com a linguagem humana. Esses processos põem em ação um simbolismo verdadeiro embora rudimentar, pelo qual dados objetivos são trans- postos em gestos formalizados, que comportam elementos variá- veis e de "significação" constante. Além disso, a situação e a função são aquelas de uma linguagem, no sentido de que o sistema é válido no interior de uma comunidade determinada e de que cada membro dessa comunidade tem aptidões para empregá-lo ou compreendê-lo nos mesmos termos.

As diferenças são, porém consideráveis e ajudam a tornar consciência do que caracteriza realmente a linguagem humana. A primeira, essencial, está em que a mensagem das abelhas consiste inteiramente na dança, sem intervenção de um aparelho "vocal'', enquanto não.há linguagem sem voz. Daí surge outra diferença, que é de ordem física. A. comunicação nas abelhas,não sendo vocal mas gestual, efetua-se necessariamente em condições que permitem percepção visual, sob a luz do dia; não pode ocorrer na obscuridade. A linguagem humana não conhece essa limitação.

Uma diferença capital aparece também na situação em que se dá a comunicação. A mensagem das abelhas não provoca nenhuma resposta do ambiente mas apenas uma certa conduta, que não é uma resposta. Isso significa que as abelhas não conhecem o diálogo, que é a condição da linguagem humana. Falamos com outros que falam, essa é a realidade humana. Isso revela um novo contraste. Porque não há diálogo para as abelhas, a comunicação se refere apenas a um certo dado objetivo. Não pode haver comunicação relativa a um dado "linguístico"; não só por haver resposta, sendo a resposta uma reação linguística a outra manifestação linguística; mas também no sentido de que a mensagem de uma abelha não pode ser reproduzida por outra que não tenha visto ela mesma os fatos que a primeira anuncia. Não se comprovou que uma. abelha vá, por exemplo, levar a outra colmeia a mensagem que recebeu na sua, o que seria uma forma de transmissão ou de retransmissão. Vê-se a diferença da linguagem humana, em que, no diálogo, a referência à experiência objetiva e a reação à manifestação linguística se misturam livremente, ao infinito. A abelha não constroi uma mensagem a partir de outra mensagem. Cada uma das que, alertadas pela dança da primeira, saem e vão alimentar-se no ponto indicado,reproduz quando volta a mesma informação, não a partir da primeira mensagem, mas à partir da realidade que acaba de comprovar. Ora, o caráter da linguagem é o de propiciar um substituto da experiência que seja adequado para ser transmitido sem fim no tempo e no espaço, o que o típico do nosso simbolismo e o fundamento da tradição linguística.

Se considerarmos agora o conteúdo da mensagem, será fácil observarmos que se refere sempre e somente a um dado, o alimento, e que as únicas variantes que comporta são relativas a dados especiais. É evidente o contraste com o ilimitado dos conteúdos da linguagem humana. Além disso, a conduta que significa a mensagem das abelhas denota um simbolismo particular que consiste num decalque da situação objetiva, da única situação que possibilita uma mensagem, sem nenhuma variação ou transposição possível. Ora, na linguagem humana, o símbolo em geral não configura os dados das experiências, no sentido de que não há relação necessária entre a referência objetiva e a forma linguística. Haveria muitas distinções para fazer aqui sob o aspecto do simbolismo humano, cuja natureza e cujo funcionamento foram pouco estudados. A diferença, porém, subsiste.

Um último caráter da comunicação das abelhas a opõe fortemente às línguas humanas. A mensagem das abelhas não se deixa analisar. Não lhes podemos ver senão um conteúdo global, ligando-se a única diferença à posição espacial do objeto relatado. É impossível, porém, decompor esse conteúdo nos seus elementos formadores, nos seus "morfemas", de maneira a fazer corresponder cada um desses morfemas a um elemento do enunciado. A linguagem humana caracteriza-se justamente aí. Cada enunciado se reduz a elementos que se deixam combinar livremente segundo regras definidas, de modo que um número reduzido de morfemas permite um número considerável de combinações de onde nasce a variedade da linguagem humana, que é a capacidade de dizer tudo. Uma análise mais aprofundada da linguagem mostra que esses morfemas, elementos de significação, se resolvem, por sua vez, em fonemas, elementos articulatórios destituídos de significação, ainda menos numerosos, cuja reunião seletiva e distintiva fornece as unidades significantes. Esses fonemas "vazios", organizados em sistemas, formam a base de todas as línguas. Está claro que a linguagem das abelhas não permite isolar semelhantes constituintes; não se reduz a elementos identificáveis e distintivos.

O conjunto dessas observações faz surgir a diferença essencial entre os processos de comunicação descobertos entre as abelhas e a nossa linguagem. Essa diferença resume-se no termo que nos parece o mais apropriado para definir o modo de comunicação empregado pelas abelhas; Não é uma linguagem, é um código de sinais. Todos os caracteres resultam disso: a fixidez do conteúdo. a invariabilidade da mensagem, a referência a uma única situação, a natureza indecomponível do enunciado, a sua transmissão unilateral. É no entanto significativo o fato de que esse código, única forma de "linguagem" que se pôde até hoje descobrir entre os animais, seja próprio de insetos que vivem em sociedade. É também a sociedade que é a condição da linguagem. Esclarecer indiretamente as condições da linguagem humana e do simbolismo que supõe não é o menor interesse das descobertas de K. von ·Frisch - além das revelações que nos trazem sobre o mundo dos insetos. É possível que o progresso das pesquisas nos faça penetrar mais fundo na compreensão dos impulsos e das modalidades desse tipo de comunicação, mas o haver estabelecido que ele existe e qual é e como funciona já significa que veremos melhor onde começa a linguagem e como se delimita o homem.

A. comunicação nas abelhas,não sendo vocal mas gestual, efetua-se necessariamente em condições que permitem percepção visual, sob a luz do dia; não pode ocorrer na obscuridade. A linguagem humana não conhece essa limitação.