A Capitolina 2, fevereiro 2014 | Page 14

problemas crônicos

13 A Capitolina

Vinha do centro para casa, um dia desses, quando encontrei com uma senhora que conheço aqui do bairro. Falamos de coisas sem importância e acabamos por falar da internet.

– É esse treco de ver gente... Como é mesmo o nome? perguntou-me ela, antes de continuar.

– Facebook, tornei eu.

– Este mesmo! É isso que não deixa mais a gente viver. Meu filho não sai mais de casa pra ficar o dia todo mexendo com isso, disse ela indignada.

Depois que a deixei, como não tivesse mais que fazer, peguei-me a pensar no que havia me dito e dei com o seguinte questionamento: São mesmo as coisas que fazem de nós o que somos ou somos nós quem nos fazemos a nós mesmos? Será a internet capaz de moldar o ser humano à medida de seus desmandos, tornando-o este ser preguiçoso, antissocial e sem iniciativa que vemos diariamente aonde quer lancemos os olhos? Ou somos nós os responsáveis por cimentar, balizar e iluminar nosso próprio caminho, sem mapa nem bússola, por essa terra estranha chamada existência? Note que a matéria do questionamento é obra superfina, própria para uma viagem de ônibus de um centro para o bairro. Acompanha o que vim matutando por aquela Av. Sul-Leste e veja se se concilia facilmente com o tesouro que encontrei no fundo de terreno lodoso e escorregadio, sob os escombros de nossa doce humanidade. Se acaso nos encontrarmos pela estrada, bonito é

que nos cumprimentemos familiarmente, deitando fora o chapéu das convenções sociais. Se acaso nos perdermos, boa viagem e adeus!

Pesquisas recentes indicam que 94% dos brasileiros que usam a internet tem como principal objetivo se comunicar. Desses, mais de 70% acessam redes sociais. É uma tendência atual, quando não uma febre.

Verdade é que os humanos são seres gregários; tem pruridos de se comunicar, saber da sua vida, se vai bem, se mal, com quem tem se relacionado, a quantas anda sua vida sexual – nada muito diferente de um grupo de bonobos, por exemplo. E não há outra razão para o sucesso dos “Facebooks” da vida, senão relacionar-se. Contudo, não sei se o leitor se apercebe, mas há uma contradição encravada aí no seio dessa pendenga. Armadilha, chamemos de armadilha, tão somente porque quadrará melhor ao que pretendo dizer. Pode ser até que um dos bonobos de alguns parágrafos atrás me interrompa, com meneios de bonobo que é, dizendo: – “Cumbuca... Bote cumbuca, meu senhor!” – “E por que usaria eu “cumbuca”, e não o outro termo, meu bom macaco?” interroguei-lhe. – “Porque macaco velho não põe a mão em cumbuca”, responde ele gesticulando sempre com suas mãozorras longas e desajeitadas.

E é essa a verdade toda, e fio que não há ninguém aí, na selva ou na frente de seu Smartphone, que venha a discordar de nosso primo símio. Quereria ele dizer, em vulgar, que se queres, com efeito, relacionar-se com outros companheiros de espécie não há que se criar uma arapuca que o estorve em fazê-lo, não é mesmo? – “Pois as cumbucas são assim”, prosseguiria ele, – “enfia-se o melado dentro para o fim de que se lhe atraia, sinta o cheiro doce do quitute suculento invadir-lhe as ventas, a boca inundar-se de saliva e acabar por crer que vai lambuzar-se. Mas no fim, acaba-se com a mão presa e não se consegue ir mais a parte alguma”, sentencia.

É sestro! Quem há de negá-lo? São biocos de macaco velho e experimentado, comido de cautelas. Aquele bar que tanto se ouviu falar da moça que conheceu no aplicativo, o churrasco que combinaram ir, a praia que conheceu cada pico – porque lhe dissessem no chat –, os passeios, todos eles, não foram deslindados pessoalmente, porque você, meu amigo, ficaste com a mão presa na cumbuca! Está daí defronte seu celular de última geração (que está mais para um computador portátil), falando de coisas que nunca viveu, planejando outras que jamais viverá. Nunca sairão da janelinha do seu talk, aquelas poucas e mal escritas linhas, encharcadas de ilusões.

E aqui surge nova pergunta, tão imprescindível quanto a primeira: “Quem afinal fazem as cumbucas?” São elas manufaturadas pela mão indelével dessa eterna embusteira que é a Mãe Natureza? Ou há a propositada e insidiosa mão humana aí? Se as há, quem é o sujeito misterioso que, na escuridão da noite, vai, calando o rumor dos sapatos, meter o tão desejado melado lá dentro? É bem, macaco não é. Por mero efeito de exclusão, conclui-se que não pode ser outro senão o próprio homem. Que outro ser dotado de tão grande caixa sobre os ombros, sustentáculo de flácido tutano, seria capaz de engendrar algo que lhe prejudicaria a si mesmo? “A natureza não brinca em serviço”, dizia meu saudoso avô. De maneira que se as cauieiras estiveram sempre lá na mata, não seria o acaso que a traria à terra e lhes faria um furo no meio. E quem mais o faria senão o mais adiantado, inteligente e adaptado dos seres viventes sobre a terra? O que ocorre é que com a invenção do homem surgiu, também, a burrice, que não existia no reino animal ou vegetal. Trata-se do “Complexo de Homer Simpson”, de quem chegou tão distante na escalada da evolução para, então, criar coisas que o deixassem menos inteligente. Por isso criou os sites de relacionamento, que além de torná-lo mais sedentário, preguiçoso e improdutivo profissionalmente, lhe impede de, efetivamente, se relacionar. Talvez algum leitor esteja daí a torcer o nariz, e argua que relaciona-se muito mais hoje com as redes sociais, sim, do que quando não as havia, por vencer ela em distâncias. Vejamos se aplica-se a regra.

Um rapaz de Cafundós conhece, via web, moça de Trás os Montes Altos. Este pergunta a ela “cm foi o dia”; aquela lhe responde “legal”. O rapaz se esforça, coça a cabeça, aperta muito os olhos em profunda reflexão e após longa batalha pessoal alcança um “blz” ... “tô saindo”, e parte para “falar” com a próxima pessoa. Outra, carecendo explicar às amigas como bateu o carro, após voltar alcoolizada da balada, indo parar na Casa de Saúde com grande prejuízo dos dentes e hematomas vários, recebe em resposta (após trinta minutos de silêncio) “que bad, amiga”, de alguém que apenas passou os olhos sobre o drama acidentício da amiga desdentada. Entrar num site de namoro e digitar mais que uma mísera linha, por exemplo, é pedir para ser ignorado ou taxado do “chato”, ou as duas coisas.

“Longos suspiros se sucediam...” dizia um antigo, em verso. Acresce que este, além de antigo era também poeta, e até bom poeta – por mais que hoje não escreva mais poemas. Escreve agora em uma coluna, assunto de atualidades, em jornal de grande circulação. Tudo, é claro, de maneira breve, que é para não enfadar o leitor. “Longos bocejos se sucediam...”, escreveu-lhe um leitor por graça, referindo-se a sua coluna de vinte e uma linhas semanais. Nem por isso se zangou. Apanhou ele seu Smartphone e foi escolher um novo amor num aplicativo de namoro desses da moda, remédio imediato para todas as ansiedades de nosso tempo.

E se ainda não está convencido de que somos nós mesmos e não a natureza quem nos molda à maneira que somos, vá botar a mão na sua cumbuca, que sei não irá hoje à parte alguma mesmo.

A CumbuCa dos Tempos

Jeff de Paula