1964 As armas da política e a ilusão armada | Page 98

perversão individualista, a passagem do indivíduo ao cidadão, e agravando em escala inédita a exclusão social, ao mobilizar setores subalternos do campo para os polos urbano-industriais, onde chegavam destituídos de direitos e de proteção das políticas públicas. Foi o processo de transição à democracia que revelou os efeitos da americanização “pelo alto” conduzida pelo regime militar, com a degradação do público não somente na esfera estatal, mas também na própria sociedade civil, em que a dimensão do interesse se aparta da dimensão da opinião, reduzindo-se a vida associativa a uma confraria inorgânica de interesses corporativos para a qual inexiste, salvo como retórica de legitimação, o horizonte da política e do interesse geral. Ensaia-se, hoje, a lenta sedimentação de uma nova cultura política, que, partindo do mundo dos interesses da grande maioria, se invista de uma expressão pública, a fim de transformar as relações entre a sociedade e seu Estado. Nesse caminho, trata-se de traduzir e elevar ao plano da política a tumultuada democratização societária, fruto imprevisto da obra do regime militar, convertendo interesses em direitos e demandas sociais em reformas públicas que democratizem o Estado. Cumprir esse novo processo requer a consolidação da democracia política e de instituições que garantam o fluxo da participação de uma cidadania que se expande, qualitativa e quantitativamente. 1964 é uma página virada, e, com tudo o que trouxe de ruim, não deixou de confirmar, com independência das intenções, uma grande e antiga paixão nacional: o desenvolvimento material, com suas naturais repercussões sobre a desorganização da sociedade tradicional brasileira. Decerto que agora nos defrontamos com um problema de construção da ordem, mas há os que a querem como resultado da participação de todos, como há os que a pretendem reduzi-la à razão, à vontade e aos interesses de alguns poucos. E é nesse novo “1964” que todos estamos entre Fujimores e Pinochets ou, no melhor, num processo de afirmação da cidadania que reforce e institucionalize, de vez, a democracia política. 96 1964 – As armas da política e a ilusão armada