1964 As armas da política e a ilusão armada | Page 96

aparelhos de Estado. Os dois momentos fariam parte do processo de longa duração da modernização conservadora brasileira, em que as elites políticas se sobreporiam às elites econômicas, e promoveriam a compatibilização entre os interesses modernos da indústria e do ethos do industrialismo com as oligarquias agrárias tradicionais, num contexto institucional de controles sociais repressivos sobre as classes subalternas. O regime militar teria produzido, pois, um resultado oposto ao das motivações que animaram as condições para o êxito do golpe de Estado, principalmente das forças sociais que o apoiaram em nome da defesa do liberalismo econômico e de uma “normalização” da estrutura de classes no país, “saneando” o Estado da presença das classes subalternas instaladas no seu interior, em razão do que seriam os efeitos perversos decorrentes do populismo de uma fração das elites e da própria estrutura corporativa na organização do sistema de poder de então. Como se sabe, tal “normalização” efetivamente ocorreu, ao preço, porém, da expropriação política de toda a sociedade civil, persistindo-se, ademais, na prática de um capitalismo politicamente orientado, muito distante das aspirações liberais de uma sociedade de livre mercado. São inúmeras, de fato, as aproximações entre 1964 e 1937, no que houve de impulso fáustico neles para o desenvolvimento das forças produtivas materiais e no seu impacto sobre as estruturas sociais e de poder da ordem tradicional. Participam, inclusive, da mesma situação paradoxal: dois regimes crucialmente autoritários, avessos à democracia política (1964 apenas tolerou o Parlamento, do qual procurou esvaziar todo poder), mas que dão curso a uma vigorosa democratização social pelas repercussões dos seus atos sobre a composição demográfica do país e suas estruturas sociais e ocupacionais. O autoritarismo desses dois regimes não se aplicou, portanto, na suspensão do movimento a fim de congelar, à Salazar, um status quo. Obedeceram, sim, à lógica transformista do conservar-mudando e frequentemente mais mudando do que conservando, basta ver a movimentação dos setores subalternos 94 1964 – As armas da política e a ilusão armada