100 anos da Revolução Russa PD_ESPECIAL | Page 48

gerontocracia não as encaminhava. Quando achou que bastava um chefe mais jovem (que se concentrou em proibir a vodca), era tarde demais. O transparente é o que menos se vê. A “União Soviética” foi um modo de os russos dominarem povos vizinhos, dando para si melhores empregos e casas, o que provocou profundas revoltas. Nos países bálticos, vi pessoas se darem os braços para que os russos fossem embora: a fila tinha setecen- tos quilômetros. O império se desfez. Na segunda metade do século 20, os Estados Unidos havia, em nome da democracia, implantado ditaduras por toda a América Latina; em nome do marxismo, o comunismo soviético não conse- guia ser materialista, nem dialético e nem histórico. Os dois regi- mes faziam o contrário do que proclamavam. Fingindo aproximar o real do ideal, aumentavam a distância entre ambos. Os inimigos se pareciam mais do que admitiam. É preciso entrar na esfinge para, de dentro, tentar decifrá-la. Não se pode confiar, porém, na apregoada honestidade da esfinge da fábula, pronta a se suicidar ante quem proferisse a palavra do seu banal mistério. Não, a oligarquia devoraria a quem dissesse o seu nome secreto, antes que mais alguém o escutasse. Não, do seu encontro com Édipo a esfinge sai disfarçada de filho de Laio. Nas primeiras décadas do século 20, fascistas e comunistas estavam todos buscando redenção, Deus projetado na sociedade ideal, o Estado como Divina Providência. Milênios de embates secretos estavam aflorando, inimigos unidos na crença de que a história teria sentido, que um homem melhor seria possível. A ilusão do ideal dava sentido às existências, parecia justificar matanças e guerras. Cada um queria ser melhor que o outro, com quem tanto se parecia. Conseguia ser pior, querendo ser melhor. Nos países sob regime comunista, necessidades básicas passa- ram a ser atendidas na paz – emprego, teto, roupa, alimentação, saúde, educação e até lazer –, não apenas no papel. Isso, porém, não bastava: depois disso é que começavam os problemas mais humanos. Acreditar em um deus que tudo sabia, significaria acei- tar a onipresença de um serviço de informações, um deus que tudo podia era incompatível com a noção de liberdade. Sob a laici- zação, havia crença, metafísica. Aqueles que acreditavam na vida eterna venceram aqueles que apostavam se salvar na existência terrena, pois ela não estava salva. Não se vivia melhor. Os cida- dãos queriam o direito de viajar sem restrições, sem lembrar que a liberdade no capitalismo é proporcional ao dinheiro; falavam de 46 Flávio R. Kothe