100 anos da Revolução Russa PD_ESPECIAL | Page 106
Em vez da recapitulação impossível, mais vale nos determos
no “pecado oriental” daquele Estado e dos outros que, depois da
2ª Guerra, a ele se somaram por força de ocupação e constituíram
o “campo socialista”, com as instituições politicamente iliberais
que nasceram no começo acidentado e aventuroso do bolchevismo
no poder. Um patriarca da esquerda italiana, Pietro Ingrao, iden-
tificou como “vício de origem” da ideologia comunista o repúdio à
democracia e a escolha da violência revolucionária como método
privilegiado de ação. Um método que por definição exclui, divide e
mata, como se viu na coletivização forçada dos anos 1930 – de
fato, uma guerra civil disfarçada que teve como alvo o vasto
mundo dos camponeses, produzindo a fome, a carestia e o gulag.
O repúdio à democracia prolongar-se-ia pelas décadas afora e
se materializaria numa rígida estrutura estatal ocupada pelo
partido único, incapaz de se renovar, mesmo quando as condições
iniciais de cerco se desvaneceram ou se atenuaram razoavel-
mente, como foi o caso do quadro que se abriu com a vitória sobre
o nazismo e o fascismo – uma contribuição extraordinária da
antiga URSS, não por acaso ao lado das potências do capitalismo
democrático. Aqui, certamente por causa da natureza do mal
absoluto de que se revestia o nazismo, os comunistas de Stalin
assumiram-se corajosamente como a ala esquerda das democra-
cias, em defesa do patrimônio comum ameaçado.
Estruturas enrijecidas, no entanto, têm dificuldades hegemôni-
cas intrínsecas. Não importavam muito o desfile dos tanques na
Praça Vermelha, a ruptura do monopólio americano da bomba ou a
paisagem azul vista por Gagarin do espaço. Quem não tem capaci-
dade de direção pode se esconder sob o disfarce de atitudes agressi-
vas, mas no fundo não agrega nem atrai. O anticapitalismo, enten-
dido como contínua reproposição de confronto com o outro campo,
sobrepunha-se nos fatos ao antifascismo: o primeiro é uma espécie
de chamado das selvas, um convite a cerrar fileiras e a falar grosso;
o segundo, ao adotar valores “burgueses”, cedo ou tarde obriga a um
repensamento e a uma revisão dos métodos e da própria concepção
do mundo. Algo muito mais difícil e arriscado, naturalmente.
Não se sabe muito bem quando a URSS e o campo soviético
perderam a disputa com o Ocidente, fosse ela direta e confli-
tuosa, fosse redefinida nos termos da competição econômica e
da “coexistência pacífica”. Talvez mais cedo do que normalmente
se pensa, o século 20 transformou-se no “século americano” por
excelência. O americanismo, tal como percebido no cárcere por
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Luiz Sérgio Henriques